sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Ela... (o alterego)



Andava descalça a meia-noite, cortando silenciosamente as avenidas mal iluminadas da capital.
O ar seco e escasso...
A respiração curta, mas acelerada. Ofegante e calada. Morta por dentro com alguma espécie de lâmina cortante. Prateada como os seus olhos n’alguns inúmeros dias atrás, quando ainda conseguia repousar à luz do sol das manhãs.
Naquele instante, anjo algum ousava voar aos redores de sua aura. Tão maculada, tão negra, embebida, ainda, do olor das flores do cemitério, dos cigarros e de vinhos doces. Dormia lá por madrugadas e madrugadas. Abria seus braços à entrega do que restara de seu coração e esperava a morte, todas as noites.
N’algum túmulo gelado e solitário, cobria-se de folhas e vento. As árvores balançavam intensamente e o frio cortante gelava seus pés alvos e miúdos.
Uma boneca de cílios longos, olhos agonizantes, lábios ainda rubros e coração despedaçado.
Seria assim até a morte, de fato?
Um sobressalto no tempo e seus olhos mudavam de ritmo e cor. Seus sonhos não podiam ser contidos durante madrugadas e madrugadas. Ainda havia um inconsciente imerso em imagens d’um passado que, por hora, faziam-na sangrar. Lágrimas caiam, uma a uma. Quase lágrimas escarlates, tão salgadas e quentes quanto o ódio que fervia-lhe a alma extremamente densa.
Alguma coruja arpando vôo e ela se levantava como anjo num céu utópico.
Suas mãos iam tocando os galhos secos das amendoeiras, os pés se misturavam à cauda do vestido branco. As barras da cauda, impregnadas de lama e pó, iam se arrastando enquanto um passo fúnebre seus pés teciam. Tudo tão impressionantemente surreal.
Os olhos sempre fixados ao nada.
O coração traspassado. Os cabelos negros e longos cobertos por jasmins e folhas secas.
Tanta coisa lhe passara pela cabeça que um dia deixou de viver, mesmo não estando á morte entregue.
Seria assim por noites e noites, pois durante os dias chorava copiosamente e tragava a brisa como o arfar de um felino rodeando a presa.
Sempre, olhos postos num horizonte que só existia dentro de si mesma. Um horizonte que, talvez, encobrira-se de fogo e cinzas, junto à sua tão distante felicidade, há tempos e tempos.
Lágrimas e pouco clamor. Um dia deixara de clamar e pôs-se a ignorar o tempo e suas fomes mortais.
Não envelhecia.
Uma fada ou bruxa diabolicamente alheia ao mundo e presa em seu passado de dor.
Hoje, um nada.
Continua a vagar nas noites mais lindas e também naquelas mais ermas. Entre tempestades, entre os muros secretos que guardam sua alma. Entre os céus e o inferno. Entremeando os dois mundos com uma beleza horrivelmente grotesca e apavorante.
O véu rasgado e manchado, ainda, de batom, dor e saudade.
Apenas uma noiva abandonada no altar do tempo...